Meu pai (Seu Kazimierz, nascido na Alemanha, mas brasileiro de carteirinha) é um cara batuta, trabalhador do cacete! Começou do zero, veio no colo da minha vovózinha (Dona Nina, Ucrâniana do inetrior) desde a Alemanha do pós-guerra, quase morreu no navio que os trouxe da miséria da segunda guerra até o Brasil. Minha avó chorava todos os dias da viagem, achava que meu avô (Seu Marian, Polako ferrenho e turrão) teria feito a escolha errada em vir para o Brasil. Queria ela ir para a América! Achava que aqui só havia macacos, mato e frutas (como ela mesmo diz).
Ela nunca havia visto um negro na vida, já tinha mais de vinte anos e durante a viagem saía para o convés do navio para tomar um ar e encontrava umas pessoas de cor... Pensava ela: "pobres homens esses, sujos de carvão das caldeiras do navio!" Só mais tarde percebeu que eles tinham a pele escura por natureza!
Nesse contexto, o trio desembarcou no Rio de Janeiro para tentar ser alguém na vida, sem lenço e sem documento... literalmente. Para ajudar, o caminhão do exército que levava meu pai e minha avó do Porto até a Estação de trem sofreu um acidente, (os homens haviam sido separados das mulheres) minha vózinha no ímpeto de proteger a prole voou na parte de trás do caminhão com meu pai no colo e abriu uma "brecha" na cabeça. Hospital e dor, sem falar uma palavra de português e com receio de estar num lugar estranho. Nessas horas meu avô chegara na estação sem saber de nada.
Por sorte, um médico falava alemão e ela pode explicar que estava a caminho da estação para encontrar-se com o velho Marian para seguir sua viagem rumo ao desconhecido.
Três semanas de trem até o destino... Porto Alegre! Alojados num barracão nos altos da Beira-Rio... ali onde hoje existe aquele condomínio horizontal em frente ao estádio do Inter, começariam sua vida por conta própria. O governo fornecia um pouco de comida e roupa... e tentava encaminhar alguns para o trabalho.
Meu avô começou numa fábrica, minha avó costurava e lavava "para fora" e recebia auxílio das freiras de uma Congregação que ajudavam os refugiados do pós-guerra! Dona Nina sempre foi hiper católica e creio que aquilo fez sua fé no Divino tornar-se algo pra vida toda.
Com o tempo, compraram um terreno na zona sul, que naquela época era um mato só. Do terreno, veio a casinha de madeira onde enfim foram morar... Sem portas, nem janelas, nem móveis, nem nada! Lembro da minha avó falando da casa com lágrimas nos olhos, descrevendo a alegria de ter seu lar... Mesmo que fosse um lar inacabado. Naquele momento eles poderiam dormir debaixo do seu próprio teto e seguir sua vida. Continuaram em seus trabalhos árduos, contando o dinheirinho para comprar um fogão, uma geladeira, uma cama e assim por diante. Minha avó plantava na horta criada nos fundos da casa (já que trabalhara muito na roça durante sua infância e seguia este serviço para os alemães durante a guerra como prisioneira, de sol a sol).
Isso é só uma pequena parte de uma vida inteira. Quem conhece minha vózinha nem acredita que ela passou por uma guerra, que ficou no cárcere, que perdeu amores, amigos e familiares. Que foi arrancada do seu lar para servir ao terceiro Reich. Que trabalhou como prisioneira sem perspectiva nenhuma. Apenas na ânsia de chegar ao fim... viva!
Hoje, meu avô já partiu para os planos invisíveis, ele sempre foi meio quietão, não tive muito contato com ele, gostaria muito que ele estivesse vivo até hoje para conversar e sentir sua história como faço com minha avó. Até hoje, quando entro na casa o vejo sentado na cozinha, com o radinho de pilhas no máximo do volume. Gremista fanático, gostava de jogar um carteado com os vizinhos, fumava pelos cotovelos e cruzava as longas pernas para apoiar os braços na coxa arqueando o tronco pra frente para se aproximar do aparelho.
Dona Nina vive na mesma casinha... cuida dela com o mesmo carinho. Vai a missa todo o domingo... Mora sozinha, cuida das suas plantinhas, chora toda vez que vê os netos e particularmente comigo, relembra sempre seus dias de guerra, de sofrimento, de tristeza e ao mesmo tempo de alegria de simplesmente ter uma vida e uma história pra contar. Já que dentro dela... tem a plena consciência de que muitos de seus amigos não tiveram a mesma sorte!
Sempre que eu penso que minha vida é difícil, que as coisas não estão bem, lembro da minha avó sentada na cozinha de sua casa, com avental sujo de farinha, suada do calor das panelinhas de metal tão antigas quanto a marca dos anos em seu rosto doce e angelical... cozinhando pra nós e sorrindo... feliz... sempre feliz... ela é pra mim, a imagem da felicidade plena e pura!